Quando é o tempo de parar de aprender? Para Cinthia Ferreira, só quando a morte chegar. Ela parece ter nascido com a vocação intrínseca de tirar lições valiosas de tudo o que vive. A pandemia da covid-19, que deixou marcas profundas na humanidade, trouxe a ela também aprendizados.
“A primeira lição é que a gente não precisa de exagero pra viver. Eu era uma pessoa que não me conformava em ficar em casa porque tinha que viver, viver, viver. Sair para comer, em muitos lugares, viajar pra todos os lugares, tinha que ver as vitrines toda semana porque se não visse eu achava que não teria como trabalhar, fazer conteúdo. Isso é uma falácia. Internet está aí pra isso”, conclui Cinthia.
E mesmo fechada em casa há quase dois anos ela não se entregou ao comodismo. A mulher sempre impulsionada ao movimento, como um propósito de vida, se voltou para si, num exercício urgente e persistente de redescoberta. “Muitas blogueiras pensam “como vou falar de moda se não estiver na rua”? E se não viajar? Ficou claro quando o conteúdo é da pessoa, quando é externo. Eu passei a ver que as dicas são minhas. Posso falar sobre como me vestir, como me maquiar, sem sair de casa. Nunca trabalhei tanto na vida, nunca imaginei ser possível. Não sei o que é sábado e domingo. As marcas pelas quais eu batalhei minha vida toda agora me procuram”, assume.
E não é qualquer marca. Cinthia é reconhecida por distribuir de graça na internet conhecimento sofisticado e amplo sobre produtos de luxo. Dos cosméticos mais tecnológicos às bolsas mais desejadas. Joias e sapatos, itens de colecionador sobre os quais ela conhece a história, esmiúça ingredientes com riqueza de detalhes. E mesmo mergulhada em tanta informação, mesmo apurando tão bem cada detalhe antes de compartilhar com seus milhares de seguidores, Cinthia ainda vê no machismo entranhado nos comentários os maiores obstáculos ao seu trabalho. Não é raro receber acusações de que “gasta todo o dinheiro do marido”. Mal sabem os haters que ela cresceu para não depender de ninguém. “Quando eu tinha nove anos meu pai falou “se você não tiver poupança não vai ter nada na vida. Abri, então, uma loja no jipe do meu avô. Vendi todos os meus brinquedos porque achei que era adulta. Com o dinheiro fui à Rua 25 de Março e comprei estojos automáticos, lapiseiras, canetas para vender. Já vendi trufas na escola, depois joias. Trabalhei de vendedora no shopping. Meu pai dizia que eu queria muita coisa e se meu marido não me desse eu ficaria triste. Eu respondi: “pai, nunca vou depender de marido”. Dito e feito!
Munida da confiança em si mesma ela deu logo cedo passos largos a caminho dos próprios sonhos. “Sou publicitária, formada em Design Gráfico. Comecei a trabalhar na área com 17 anos. Com 19, abri meu escritório. Tinha grandes clientes e fazia catálogos para marcas importantes. Uma amiga me pedia muitas dicas sobre roupas e cosméticos, sapatos e maquiagens. Eu indicava produtos, trazia de fora. Ela me falou para criar um blog em 2008. Eu mal sabia do que se tratava. Comecei a ver primeiro o blog da Marina Smith. Passei a segui-la, trocava ideias, comprava o que ela falava. Aí montei meu canal no Youtube. Naquele momento não gostei de gravar vídeos. O blog fazia mais sentido porque eu trabalhava com design, gostava de criar as páginas. Eu tinha 29 anos. As blogueiras, 16. Eu era a “tia “ dos blogs, então passei a falar de anti-idade. Apareceram propostas para colocar um banner no blog e o pagamento ainda não era dinheiro. Eu ganhava produtos. Depois, descobri programas de afiliados e permaneci produzindo conteúdo. Em seis meses começou a dar dinheiro. Aos poucos fui cortando clientes do escritório de design e, em dois anos, eu estava ganhando o mesmo que antes”.
Assim nasceu o Makeup Atelier, bíblia da beleza e da moda para muitas leitoras fieis. Para subir os grandes degraus que ela mesma se propôs a alcançar Cinthia investiu primeiro não em bolsas, nem em cosméticos. Ela voltou seus olhos mesmo para um bem que ninguém nunca poderá tirar dela: conhecimento. “ Me formei em marketing, fiz consultoria de imagens, outros cursos de moda e maquiagem. Ano passado fiz pós-graduação em jornalismo”, conta.
Luxo mesmo pra Cinthia é hoje ter saúde. Física e mental. “Na pandemia surtei várias vezes. Várias! Não piso fora do apartamento há dois anos. Nesse tempo só peguei elevador duas vezes para tomar vacina. Chega a entrega eu pego de madrugada. Não vi nem meus pais.
O médico do meu marido falou que era complicada a situação dele. Era pra ele ter operado de sinusite quando a pandemia começou. Ele teve uma infecção muito forte. Se eu sair pra uma coisa besta e trouxer a doença pra ele eu nunca na minha vida vou me perdoar. Vale o risco”.
Fechada em sua casa ela abriu portas e janelas para novos parceiros comerciais, para novos seguidores que chegaram. Abriu sorrisos nos rostos de antigos admiradores que viram nela companhia para enfrentar esses tempos difíceis. Foi muito além da beleza. Criou uma coleção de roupas em parceria com Marina Smith e a marca sulista Anafran. Cozinhou, dançou, plantou, limpou, exercitou o lado teatral que há muito estava guardado em segundo plano. Os dilemas insones com o colchão defeituoso, as dicas para cuidar do vitiligo, a saudade de ganhar o mundo nas viagens foram compartilhadas com a audiência, com boas doses de respeito e cuidado, porque Cinthia é assim: estende ao outro o cuidado que dispensa a ela mesma.
Ao mesmo tempo em que expõe suas medidas para ajudar leitoras a comprar peças, conjuga um corpo no feminino, lindo e imperfeito, como todos são, esquadrinha lições de autoestima, desafia preconceitos diários. “Nossos amigos tiveram filhos e vimos que não era pra nós. Não conseguia me enxergar mãe e o dia em que teria vontade de engravidar nunca chegou. Com 35 anos os níveis de hormônio caíram e eu e meu marido conversamos. Ele já não queria. Desse dia em diante decidimos e assumimos não ter filhos. Não operamos, mas hoje não queremos ter filhos. A família sofreu, claro. Mas para mim foi como se tivessem tirado minha algema e dito `você está livre`”, reflete.
A cobrança da família deu trégua. A da audiência, nunca! Além dos questionamentos sobre opção de não ser mãe, recebe acusações de que é bulímica. Já teve seus dentes, nariz, o formato dos lábios, o corte de cabelos criticados por um ou outro leitor. Cinthia já não precisa reafirmar a própria identidade para ninguém. Com anos de prática em ter sua vida analisada pela blogosfera só o que a tira do prumo é questionar sua honestidade. “Não consegui superar. Posto comida e as pessoas perguntam se eu vomito a comida. Como não engordo? A resposta é: tenho equilíbrio. Posto foto da comida porcaria, mas não do arroz com feijão de todo dia. As pessoas falam que sou fútil, que meu marido me sustenta...Escuto muito isso! Mas as pessoas têm uma visão seletiva da minha vida, não conseguem lidar com uma mulher que ganha o próprio dinheiro, uma mulher cujo marido nunca precisou sustentar. Acham que minha profissão é fácil, então me atacam. Nada me afeta. Só quando dizem que eu estou mentindo ou sou desonesta quanto a um produto que anuncio. Eu choro”.
A mulher forte, que já não se abala, não expõe suas feridas, seus medos. Já sobreviveu a acidentes automobilísticos, já foi refém de bandidos. Só não é refém da opinião alheia, nem da falta de criatividade. “ Não tomo um banho sem ter uma ideia. É surreal. Quando você está na rua, viajando, está ocupado você não tem tempo de morar na sua cabeça. Quando eu tenho tempo vou tendo ideia. Preciso selecionar ideias pra não ficar louca. Queria desligar minha cabeça”, ri Cinthia.
Quando a pandemia não mais espalhar seu rastro de morte pelo planeta ela pretende reencontrar o mundo de novo. Quer viajar para um lugar lindo, em meio à natureza, com mato, com cachoeira, e recarregar as baterias gastas no apartamento em São Paulo. “Me faz feliz conhecer lugares, viver experiências novas. Entrar em um lugar que nunca entrei, ver o que nunca vi. É o que me move. Meu plano é viver pelo mundo”.
De repente fazer de seu perfil de viagens, o Spicy Vanilla, um passaporte para os rincões mais belos do planeta. O nome veio inspirado na personalidade dela mesma: doce como baunilha, com toques apimentados. “Eu sou fofa e também tenho atitude spicy. Uso saia rodada e sapatilha em um dia, e coturno no outro. São meus dois lados. Eu sou doce e também radical”.
Onde o destino a levará? Só vivendo para saber. Mas creia que, movida pela busca do novo, do aprendizado, do compartilhar, aquela Cinthia que retornará não será a mesma que foi.
Comments