Nos porões do inconsciente moram as experiências de cada um. E quanta experiência é capaz de guardar? Se a vida é feita delas, que Fabiana Gomes torna-se nossa guia nessa jornada finita de momentos.
A vida, para ela, parecia mesmo ser pequena para matar sua fome de viver. Pequena ela nunca foi. Nasceu destinada a ser grande. Com 1,80m de altura tem um sorriso que parece abraçar o mundo, mas são os olhos, grandes janelas da alma, que buscam o melhor de tudo, de todos.
Ela veio ao mundo em Curitiba, orgulhosa filha de uma pioneira. O tabu da mulher que fica em casa para cuidar dos filhos, para ela, nunca existiu. Cresceu vendo a mãe trabalhar fora, na roça, na cidade, vaidosa na medida. A porta de entrada de Fabiana para os caminhos da beleza foi a irmã mais velha, modelo. Mas quando chegou sua vez de traçar o próprio rumo, não queria viver apenas uma história. Queria ser ampla, plural. Escolheu o teatro. Onde mais poderia ser tantas ao mesmo tempo sem deixar de ser ela mesma?
As festas mais famosas da capital paranaense contavam com sua simpatia e mais, sua empatia, na porta de entrada. Tinha nos artistas almas-gêmeas na construção de uma história sem amarras e limites. E foi para ver uma artista que saiu de Curitiba, em 1996, seduzida pela performance da cantora e compositora islandesa Bjork. Chegou em São Paulo, emendou o show com as sessões da Mostra Internacional de Cinema e não foi mais embora. “ Eu tinha uma piração com cinema. Via muito filme europeu. Larguei tudo lá, namorado, faculdade de teatro, e vim”, relembra.
Como a busca por conhecimento não dava pausa, devorava os livros e toda informação derramada sobre ela pelo irmão, economista, e seus amigos intelectuais. Entre uma leitura e outra, encontrou um workshop do diretor e dramaturgo Gerald Thomas. Eram 300 inscritos. Ficaram 30, ela entre eles, fazendo do palco, lar. E quando não estava no teatro frequentava um bar de teatro, “Era o Riviera. Não esse Riviera de hoje, era um buteco, com garçons oldschool. Na parede havia um anúncio de vaga de trabalho. Pedi um emprego e consegui. Liguei para minha mãe e falei: `arrumei um emprego`. E nunca mais voltei”.
DA BANDEJA ÀS PASSARELAS
A carreira como garçonete durou pouco, em compensação, as experiências colhidas na maior cidade do país não tinham fim. “Ia a vernissages porque eu gosto de arte. E ainda comia e bebia de graça. Até em eventos muito restritos do MASP (Museu de Arte de São Paulo) já entrei. Chegava na recepção e falava: `esqueci o convite no hotel`. Entrava”, diverte-se ela ao lembrar. A noite era o tempo de desbravar, de construir castelos mentais. Mas a sede de mais conhecimento fazia morada dentro dela. Sentia falta do estudo, formal, intenso, acadêmico. Tornou-se secretária-executiva em uma construtora, de dia. Entrou na Faculdade de Direito, mas lei, para ela, era usar os pinceis para revelar a melhor versão de cada um. Também trabalhou como vendedora na loja do estilista Lino Villaventura. Depois, inquieta como ela só, participou de um processo seletivo para uma vaga de trabalho misteriosa. Com senso estético apurado pelo teatro, pela arte, imprimiu o currículo com uma fonte estilosa, em transparência. Aprovada de etapa em etapa, viu-se em 2002 contratada para primeira equipe da MAC. A gigante dos cosméticos abria as portas no Brasil. Toda o know-how em maquiagem que ela carregava vinha do teatro. Entretanto, a técnica era ensinável. Fabiana tinha o que empresa alguma poderia ensinar: senso estético, capacidade de questionamento e o poder da comunicação. “A sociedade impõe que as pessoas sigam um padrão. Você precisa equilibrar as formas, harmonizar o rosto. Você é atravessado por uma ideia de tentar “ consertar” as pessoas. Mas eu questionava: por quê? Eu queria ouvir as pessoas, saber o que elas gostariam de valorizar, e na MAC isso sempre foi tranquilo”, reflete.
Fazendo da cadeira de maquiagem divã, ela criou de tudo. Foi de vendedora a gerente. Passou pelos camarotes da Brahma no carnaval, pelo backstage da São Paulo Fashion Week, pela Daslu, pela MAC Morumbi, até virar maquiadora sênior. “Eu trabalhava com celebridades, com moda, aparecia na TV, mas nunca me enganei com o que eu era ali: uma operária da beleza. Tem muita imagem criada que não corresponde com a pessoa. As pessoas queriam saber como cheguei ali, e eu devolvia a pergunta: onde você acha que cheguei? O que te seduz na minha imagem?”, provoca Fabi.
Não é difícil descobrir. Fabi faz poesia com batons e sombras. Traça um delineado capaz de realinhar histórias. Usa um blush para construir pontes entre ela e os outros, entre a pessoa maquiada e sua própria consciência. Não demorou para que a MAC percebesse. Ela viajou o mundo produzindo as modelos para as semanas de moda. Milão, Paris, Londres, Nova York... “Paris é a mais desafiadora. É a última do calendário, todo mundo já está cansado. A pele das modelos sente a exaustão”, ressalta. Fabiana deixa o mantra de seu esforço impresso em cada rosto maquiado e, assim, passou também a assinar desfiles, que é, no jargão da moda, ser responsável pela criação artística do visual que estampará a face das modelos em cada show. Coordenava maquiadores de todos os continentes, atendia a imprensa, a equipe do desfile, os estilistas. “Tem gente que sabe o que quer. Tem estilista que muda tudo no dia do desfile. É assustador.”
E apesar de gostar do pé na estrada, de se deixar perder em cada cidade, de ver prazer em desbravar o desconhecido, ela deixava o coração no Brasil, com os dois filhos. “É o preço que você paga quando viaja muito. Nas viagens para Fashion Week ficava 20 dias fora e sempre queria voltar correndo. Sofria muito já antes de viajar, entrava no taxi chorando. Mas lá eu me dedicava ao trabalho, fazia o que era preciso. Falava com os meninos todos os dias. Já até participei de reunião da escola pela internet, durante a madrugada em Paris, com os vizinhos de quarto no hotel me xingando. Evitava “viver no Brasil” se eu não estava aqui”, explica.
ANALISANDO A VIDA
Com a mente aberta, mete a cara no mundo com tanta naturalidade que parece transitar com leveza e segurança por todos os países, todas as culturas, porque ela mesma faz questão de respeitar e se misturar a todas elas. E se está fechada em casa permite que a cabeça viaje sem fronteiras nas páginas de tantos livros. Gosta de Ariano Suassuna. Transita com maestria entre Itamar Vieira Júnior, Rosa Montero e a filosofia do sul-coreano Byung-Chul Han. Abre-se para os sonhos de Freud e para o mundo nas janelas da internet, falando de maquiagem, comida orgânica, política, distribuindo bálsamos de aceitação, de amor-próprio, de força, de autocuidado (que vai muito além de tratar a pele e o cabelo, atingindo a alma!). Nas mesmas redes sociais que parecem só “ vender” a forma, sem se importar com o conteúdo, ela repensa o conteúdo de nós mesmos e desvenda outras mulheres no “ E AÍ, BELEZA?”, seu quadro na Universa, que usa a maquiagem quase como desculpa para abordar a arte, preconceito, medos, filosofia com mulheres de todas as idades. “Na coluna tento ser eu, uso linguagem clara. Gosto da conversa, do contato com as pessoas. Não quero me restringir a ser maquiadora. Gosto da maquiagem. Ela movimenta a indústria, gera emprego, mas há coisas questionáveis”.
Desde janeiro de 2020 ela deixou a MAC, mas ainda contribui com a marca. Lá ela descobriu que não queria só ver as pessoas por fora. Sempre quis enxergar as pessoas por dentro, ouvir o outro. E ouvindo o próprio chamado foi fazer pós-graduação em psicanálise. Na tentativa de entender melhor o outro torna a si mesma melhor a cada instante. “Quero continuar em movimento, viajando, vendo, conhecendo gente”.
Nesses tempos duros de pandemia, distanciamento social, doença e morte Fabi revisita a memória, renova a esperança no abraço dos filhos, nos encontros virtuais com amigos e no aprendizado de chinês, alemão e latim por aplicativo.
Um pouco da herança familiar, um pouco do aprendizado nos livros, um pouco de sua leitura da vida e aí foi nascendo, quase inconscientemente, uma mulher que faz arte nos rostos e nos dias, com um específico e único tipo de conhecimento, capaz usar blush como ferramenta de luta e meio de comunicação. Com uma enorme capacidade de se adaptar as imposições e de questionar cada uma delas. Olhando para fora, Fabi quer continuar cedendo sua voz por aqueles que a tem calada, por um país mais justo, mais livre, mais igualitário e, de preferência, com um belo batom vermelho. Olhando para dentro, quer preparar cidadãos melhores para o mundo. “Um lugar bom tem que ser bom pra todos. É onde todos podem pensar de modo autônomo, com mais amor. A compaixão estaria contemplada aí. Acredito nos direitos humanos e em um mundo menos desigual, onde todos tenham seu lugar ao sol, com respeito e afeto. Para construir esse mundo todo mundo tem que se abrir para a escuta”.
Seja nos desfiles, na sala de aula, no camarim, na mesa do bar ou no divã das redes sociais, felizes daqueles que têm Fabi Gomes para ouvir.
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