O Brasil precisa conhecer a Amazônia. Enquanto a floresta é consumida a olhos vistos e as taxas de desmatamento são as maiores dos últimos anos, as lacunas de floresta são vistas até do espaço. A maior floresta tropical do mundo não é o pulmão do planeta, ao contrário do que muitos pensam. A ciência já mostrou que seu papel é o outro, e é fundamental! Ela retem um enorme estoque de carbono. Quanto mais a vegetação é suprimida, mais quente fica o planeta. Ela envia água para toda a América Latina, ela protege a maior biodiversidade do mundo, ela está aqui antes mesmo do Brasil ser Brasil. Ela é lar de centenas de comunidades tradicionais que já vivem ali há milhares de anos.
O primeiro passo pra proteger a floresta (sem mesmo morar nela) é conhecê-la. E nessa hora, Milton Hatoum é imbatível. Filho da terra, o escritor planta sementes do conhecimento com boa literatura. Nos transporta para uma Amazônia que não está nos jornais, ou nos pedidos de socorro das ongs. A Amazônia de Hatoum mistura povos, amores, tramas ancestrais, violência e solidariedade. Artistas e intelectuais, militares, comerciantes, o povo das águas figuram em sua narrativa rica e surpreendente.
É assim com Cinzas do Norte, uma perfeição de obra. Este terceiro romance de Milton Hatoum é o relato de uma longa revolta e do esforço de compreendê-la. Na Manaus dos anos 1950 e 1960, dois meninos de clases sociais distintas mas com vidas entrelaçadas desde antes de seu nascimento, travam uma amizade cheia de amor e incompreensão que atravessará toda a vida. De um lado, Lavo, o narrador órfão, criado por dois tios mal-e-mal remediados, que cresce à sombra da rica e reconhecida família Mattoso. De outro, Mundo, filho da bela e desejada Alícia, mãe jovem e mercurial, e do aristocrático e poderoso Jano.
No centro das ambições de Jano está a vida pujante do herdeiro e a Vila Amazônia, junto a Parintins, sede de uma plantação de juta e pesadelo máximo de Mundo. A fim de realizar suas inclinações artísticas, ou para investigar suas angústias mais profundas, o jovem engalfinha-se numa luta contra o pai, a província, a moral dominante e a relação com a mãe. Nesse cenário os militares tomam o poder em 1964 e dão início à vertiginosa destruição de Manaus e do resto do Brasil, temperada com terror e corrupção. Nessa luta que se transforma em fuga rebelde, o rapaz transforma sua arte em questionamento das injustiças sociais e da destruição da floresta, alcança a Berlim e a Londres irrequietas da década de 1970, de onde manda sinais de vida para o amigo Lavo, agora advogado, mas ainda preso à cidade natal.
Outros fios completam o tecido ficcional de Cinzas do Norte: uma carta que o tio Ranulfo envia a Mundo, uma outra que este deixa como legado para o amigo de infância. São versões e revelações que se cruzam ou desencontram, sem jamais chegar a esgotar o enigma de uma vida singular ou a diminuir a dor da derrota final, às mãos da doença, da solidão e da violência. Neste livro, Hatoum descreve os dilemas de sua geração e talvez nunca imaginasse que eles continuariam tão atuais nesses tempos brutais de 2022. Cinzas do Norte é um sopro de choque de realidade amazônica, e um sopro de força também.
TÍTULO: Cinzas do Norte
AUTOR: Milton Hatoum
EDITORA: Companhia das Letras
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